Liberalismo
Em tempos que políticos populistas e autoritários se auto proclamam liberais, acredito ser produtivo retomarmos os clássicos da verdadeira filosofia liberal. Sou formada na área das Ciências Sociais, e alguns liberais foram essenciais para a minha trajetória intelectual.
O liberalismo é um tradição filosófica muito heterogênea, baseada na defesa da liberdade individual das esferas não só econômica, mas também política, religiosa e civil. Dessa forma, escrevo esse texto para compartilhar com vocês as três obras que pessoalmente me impactaram durante meus estudos e que acredito que verdadeiramente representam o que existe de melhor do pensamento liberal.
Uma Carta sobre a Tolerância – John Locke
A Europa, desde a Reforma Protestante de 1517, vivia diversos conflitos violentos que colocavam católicos, protestantantes e diversas seitas religiosas em guerra permanente. A proposta de Jonh Locke no século XVII para o fim da desintegração social motivada pelos conflitos religiosos era, portanto, a tolerância. Em seu exílio na Holanda, onde se refugiou em 1683, o filósofo inglês escreveu um dos escritos mais belos sobre a tolerância religiosa. A carta propunha a separação entre Igreja e Estado, por entender que Estado eIigreja são coisas distintas.
O primeiro voltado para coisas terrestres. O segundo voltado para coisas celestiais. Locke, como um contratualista, acreditava que para haver sociedade era preciso haver leis, e o objetivo do Estado é proteger os direitos naturais dos individuos através dessas leis. Ou seja, como um liberal, o objetivo da coação da lei é preservar e aumentar a liberdade dos individuos.
A Igreja por outro lado demonstra uma natureza de associação voluntária, livre e espontânea, diferente do Estado. Servir a Deus não se trata, portanto, de uma obrigação, visto que a Igreja não deve ter poder de coação e sua essência deve ser a tolerância. A potência da religião estava verdadeiramente na própria fé. Dessa forma, os assuntos religiosos não diriam respeito aos Magistrados, sendo Estado e Igreja universos completamente distintos.
Entretanto, o autor também tem o limites de seus tempos. A tolerância de Locke não contempla os católiticos, por considerar que esses obedeciam autoridade estrangeira (Roma) e ateus, por considerar que esses seriam incapazes de firmarem o contrato social. De qualquer forma, suas ideias fizeram Londes aprovar o Ato de Tolerância em 1683 que autorizou a liberdade de cultos não conformistas mesmo com uma série de restrições.
Mesmo que Locke tenha restrições ao estender a sua tolerância à católicos e à ateus, sua contribuição abriu caminhos para discuções do estado laico e para a liberdade religiosa em diversos lugares como nos Estados Unidos na Constituição de 1787 e na França na Constituição 1791.
Origens do Totalitarismo – Hanna Arendt
Aqueles livros que nasceram já como clássicos. Um diagnóstico certeiro sobre o que ocorreu com o século XX, que coloca o Stalinismo e o Nazismo como farinha do mesmo saco. O que hoje parece óbvio no meio do século XX não parecia tão óbvio assim. Considero Hannah Arendt, particularmente, a mente mais brilhante da filosofia contemporânea. Para ela, quando os indivíduos abrem mão da suas capacidades de reflexividade, ou seja, da capacidade de pensarem, passam a viverem a experiência no regime totalitário, e o mal se torna completamente banal e o bem passa ser esquecido.
O livro Origens do Totalitarismo é na verdade três livros em um, dividido entre: Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. Uma obra interessante para entender sobre o crescimento do antissemitismo na Europa Central e Ocidental desde o século XIX e o imperialismo colonial europeu até a Primeira Guerra Mundial. A última parte do livro dedica-se a discutir sobre os principais movimentos da Alemanha Nazista e da Russia Stalinista. Recheado de dados históricos, uma análise filosófica definitiva sobre a configuração dos regimes totalitários não só do século XX, mas do que seria organizações políticas autoritárias em um futuro distante (ou de um futuro mais próximo do que gostaríamos).
Os donos do poder de Raymundo Faoro
Recebeu o prêmio José Veríssimo pela Academia Brasileira de Letras em 1959. Entretanto, essa obra prima foi praticamente ignorada pelos centros universitários por oferecer um conteúdo crítico e mais original que a perspectiva marxista típica do cenário intelectual.
Com excelentes projeções do futuro e sistemática investigação do passado, Raymundo Faoro oferece um diagnóstico duro. E como um balde de água fria sob nossas cabeças, o autor é certeiro ao dizer que a história brasileira é como um “cemitério de projetos e ilusões de espectros”.
A obra de orientação liberal-democrática desvenda uma nação de fachada republicana e interior autoritário, onde o modelo de organização patrimonial ibérica politicamente orientada seria parcialmente interpelado pela modernização de caráter dualista e esquizofrênica. Ao decifrar a natureza patrimonial do nosso Estado, o autor desvenda uma viagem histórica de mais seis séculos, das dinastias portuguesas até a nossa república privatista.
Os donos do poder é brilhante ao narrar o desenvolvimento de um industrialismo sem liberalismo econômico, afinal liberalismo econômico não se conquista por decisão oficial. A genealogia de um Estado republicano sem igualdade, pois esse não se sustenta através de favores oficiais.
Três autores representem diferentes escolas de pensamentos, expressando distintos liberalismos, porém compartilhando os valores que repudiam o autoritarismo, a violência e o sectarismo, instrumentos que nunca foram aliados à filosofia liberal.